Matheus Fernando – Mathenovê, entrevista Ofélia Frantumare (Pseudônimo), artista visual e escritora de Caruaru-PE para nossa primeira edição “Transubstanciação da Paisagem Poética”. Veja aqui a entrevista completa abaixo.
DATA DE PUBLICAÇÃO: Mar 16, 2025.
Matheus: Quem é Ofélia Frantumare?
Ofélia: Ela representa todas as minhas perguntas. Ofélia é uma pergunta por si só, a pergunto muitas coisas através de seu corpo e ela transmite o intransmissível de mim, ela é um grande pedaço que se sobressaiu de meu corpo quando me desmembrei, fazendo uma ode a todas as mulheres que minha esfera corpórea habitou. Ela é mais livre do que eu, preciso dela para que conte e traduza outras histórias de mim, de tempos mais remotos, nas quais as sílabas e as palavras são inacessíveis para mim, são palavras sombrias e que me furam, preciso estar esvaziada e de corpo aberto para captar o sentido visceral delas e Ofélia tem o corpo vazio e transparente. O seu nome vem de Shakspeare, da tragédia “Hamlet”, ali Ofélia foi um corpo de uma personagem feminina que foi atravessada e moldada fatalmente por narrativas que a corromperam, narrativas masculinas, não suas. Ela quis subverter a ordem dos fatos que estava em seu entorno, queria se apagar, destituiu-se em seu próprio enigma de mulher sendo até mais emblemática que o próprio protagonista da história, pouco se viu a própria tragédia de Ofélia, ela se revelou em sua própria fatalidade, mas ainda oculta e lacunar, quando deixou seu corpo em morte no lago. Tenho em mim muitas tragédias, histórias e romances que se traduzem por minha Ofélia, ela se comunica com meus pedaços e capta pela memória o que restou do tempo, se diz por uma palavra única e quebrada. Seu sobrenome, “Frantumare” vem do italiano, uma língua em que as palavras preenchem o que ecoa de mim, tenho um apreço por escrever e me traduzir em italiano. Frantumare significa “esmagar”, “quebrar”, é um verbo. Desse verbo me faço carne e consigo me comunicar com todos os meus pedaços perdidos, que se ligam a memórias e delas vêm sentidos e verdades que reverberam em mim para além do tempo, sou essencialmente quebrada. Ofélia é quebrada e transita por todos os meus portais, ela é livre para divagar e resgatar o que pulsa em mim pela grafia, me deixa em carne viva, me esmaga com meu próprio sentido para que minha vida tenha um novo significado. Ofélia Frantumare é metonímia, objeto ausente, fantasmagórico, Ofélia não é um personagem, não sou ela, ela é eu.
Matheus: Quais os temas que predominam na sua escrita?
Ofélia: Gosto de escrever o que vem do meu íntimo visceral, conseguir pela sensibilidade, ultrapassar as minhas margens, uma espécie de névoa que há entre o que desejo e a palavra que o nomeia. Para desejar em vida é necessário se descamar, escrever é perigoso, sempre nos enunciamos uma verdade proibida, verdade que formulada em sílabas, viram uma pedra atirada num espelho. Daí, há um reflexo no vidro do espelho de um rosto, um corpo inteiro se quebra, tem-se frangalhos no chão, outros se perdem, jamais são encontrados, os cacos de vidro que com suas estruturas pontiagudas, tortas, formam um mosaico imperfeito, quebrado e faltoso da figura de um corpo, esse corpo de imagem desfigurada é o corpo real, ausente e irreconhecível, é tudo que atravessa a essência invisível, tão fugidia e paradoxalmente presente desse reflexo que falo. A diferença que não sou o reflexo, sou uma substância que liga cada caco de vidro entre si, que tenta captar a ligação incoesa deles, captar em palavra o som, o momento do rompimento, a memória de um pulsar feminino, uma repetição, um sentimento que se transcende colossalmente por nostalgias, falo sobre uma divagação em que preciso passar por terrenos jamais pisados de meu ser, me dizer coisas jamais escritas que se referem ao desejo, ausências, dor, melancolia e o que tece um corpo feminino e o que se faz dele, escrevo numa tentativa de me salvar e dar outro sentido para minha vida, em prol de resgatar e recuperar o irrecuperável de mim. É uma tragédia bonita falada a partir de um lugar ausente, acho que me revelo nesse lugar.
Matheus: Quais são suas influências literárias e artísticas?
Ofélia: Muito de mim hoje e do que começo a expressar, vem de uma identificação que acontece de dentro para fora e como fios que me enovelam às palavras de outras figuras femininas que usam meios próprios com sua arte, como um reflexo do que pulsam em seu próprio vir a ser feminino, gosto de artistas mulheres que conseguem tecer algo abstrato e único à todas mulher, de seu próprio modo, elas falam um código secreto que somente um ouvido feminino escuta, um falasser que evoca muitos dizeres. Em literatura, Clarice Lispector, Annie Ernaux, Hélène Cixous, Elena Ferrante, Virginia Woolf e Sylvia Plath revelam seu feminino de um modo em que cada uma delas diz um ponto de atravessamento íntimo ao gênero da mulher, como o desejo, metamorfose, passagem do tempo, devastações psíquicas, morte e falta de sentido. Para além da escrita, minha arte se faz também de outras mulheres, fotografias e filmes que refletem o onírico, um quê envelhecido, juvenil, místico e sortilégico também me encantam, me trazem uma liberdade da qual eu me regozijo para percorrer as minhas margens obscuras e navegar no mundo de minhas palavras, para captar um êxtase do instante, sou a sobra do objeto, sempre quero alcançar essa substância que me constitui e que tanto me guia no que desejo e no que faço em vida. Gosto de diretoras que conseguem alcançar isso como Àgnes Varda, Sofia Copolla e o diretor francês vanguardista, Luc Godard, eles conseguem com sua sensibilidade, sua visão de mundo, uma produção independente, alcançar um vórtex, um centro do falasser que foge de ideais opressores e de produções capitalistas.
Matheus: Por que escrever?
Por que as colagens? Ofélia: Escrevo numa tentativa de resgatar tudo o que de intensamente uma outra, outras, Outras, versões de mim pulsaram e pulsam. Ver em mim a passagem do tempo, até de entender meus próprios porquês. Escrevo por coragem e por recordação, para não me esquecer. Tenho diários antigos desde meus 12 anos, eu sempre fui sensível e eletrizada por meus próprios pensamentos, escrevia em segredo, mas eram segredos tão secretos que não me contei e até hoje alguns não me contei, como um pacto sagrado, mas esses segredos verdadeiros perpetuam em mim até hoje mesmo sem dizêlos e eles são quem eu sou. Se escrevo por esse corpo, é porque sou o que sou, porque lembrei-me dela. O tempo apaga vozes, letras, o que fica é sempre a marca da grafia do lápis no papel e nunca se dá nem para saber o que se passou na minha mente, na de quem escreveu e me bate uma melancolia, um arrependimento. E é o que eu vejo nos meus diários antigos ou de diários que nem sequer existiriam, queria entender por que não escrevi um pedaço de minha história, somos sempre uma história feia, maldita e mal vivida, preciso escrever para me rasgar com minha própria verdade. Escrevo em diários para me ver sendo, e me apagando de uma falsa escrita e pensamento ao longo do tempo, para que depois eu leia um pedaço vivo de memória que se eternizou. Me contradigo sempre, quero escrever, mas não quero. Não quero algo que me barre ou que o externo me furte. Minha escrita continua sendo secreta, mas um segredo que não me tocam, me furtam ou julgam. É um segredo de minha esfera e somente meu, sempre existe um ocultamento entre letras no que diz ao que estou fazendo de mim, com minha vida e meu desejo, é um apagamento para o mundo e uma descoberta do que está por dentro de mim. Não quero falar de mim para ninguém. E quanto as colagens, transfiguro em imagens, cortes e pedaços de cores do papel o efeito de meus sentimentos, formação de conceitos e ideias sobre algo de mim, de versões anteriores, como amor, sexualidade, desejo e de impressões que ficam em mim quando leio ou consumo a arte de quem me interessa. É uma construção subliminar que me leva a escolher e montar cada corte e imagem, todas elas ficam guardadas em meus diários.
Matheus: Como você percebe o papel do inconsciente no seu processo de escrita?
Ofélia: Essa pergunta me toca profundamente. Meu inconsciente é como uma casa antiga que resido nela para sempre, essa casa existe e sempre existirá independente do tempo e de mim, ela tem várias portas, janelas, escadas, buracos, paredes mofadas, objetos espalhados e velhos, restos mortais, quartos vazios, quartos trancados. Ela é uma casa plástica que a qualquer momento outra porta abre. Sonho muito com elementos de casa, porta, corredores, não sei exatamente por que e nem como uso essa metáfora de casa para falar do meu inconsciente. Ele é nostálgico, estupefato, visceral, grafia própria. Eu transito como uma alma por dentro da casa e por entre paredes das paredes. Como na casa de Coraline, existem muitos mundos secretos em mim, Outras de mim, gatos, ratos, símbolos, linguagem primitiva da qual nutrem minhas flores e que bebo para escrever. Nunca sairei dessa casa.
Matheus: Quais emoções e sentimentos você sente quando escreve?
Ofélia: Eu nasci há pouco tempo, estou me conhecendo, estou sendo, apesar que acho que me revelei na escrita em outros diários, quando estava entrando nessa dimensão fragmentada para me nomear como Ofélia. Não acho que quem me criou seja eu, mas eu sou ela. Escrever o que sinto é como me perfurar, mergulhar em água ardente, fria, é solidão de inverno, ora chuva de verão, é como sentir meu espírito ser transportado para lugares das quais experienciei memórias tão ligeiras que nem absorvi, um instante do passado se passa por sentimentos quase que tão suaves, como cheiro de rosa, tem que chegar perto para sentir. Chego perto do sentimento exato que quero descrever sobre uma história, quando a vivenciei, os sentimentos do passado se tornam tão vivos como se fossem da primeira vez, mas ainda não é exato, mas gosto de captar o efêmero. Gosto de escrever quanto sinto muito. A palavra vem da cor de carvão, tão forte que nada a apaga, e ela se torna visceral, as letras percorrem minha cabeça como um espiral, como descer uma escada espiralada, vai de cima para baixo, baixo, baixo, baixo, daí gosto do que escrevo, porque é real, como agora. Guardo saudades, euforia, ódios, raivas, quando passo para as folhas do diário o que quero, quero captar a onda exata do sentido de cada letra. Sinto um prazer imenso porque me aquece escrever algo de mim, porque transitei entre o lugar sensível e a superfície. Como Clarice diz em água-viva; “Cheguei atrás do pensamento”. Escrevo até de olhos fechados, não sinto o tempo passar, pois estou passando por ele. Depois leio e choro, choro escrevendo. Choro depois lendo o que fiz, ardo quando escrevo algo que me incomoda, me sinto atravessada por um corte profundo, mas isso tudo sou eu. Que seja. Que seja. Nada de mim é melhor do que a palavra, nenhuma imagem ou desenho me traduz. Vivo ardendo. Escrevo e coleciono diários como corpos expostos das mulheres que encarnei, são meus álbuns de recordação. Escrevo porque estou desejando, quero escrever por inteiro, não pela metade, escrevo de corpo e alma, assim como quero desejar. Com esse corpo, sendo Ofélia, posso dizer.
Matheus: Como você, hoje, faz a relação de escrita e arte visual?
Ofélia: Eu sou a essência de quem escreve. Eu tenho uma coragem que ela não tem, estou em falta e em corpo vivo. Estamos sendo. Estamos falando, ora uma, ora outra, eu puxo para os dois lados, mas sempre mais, para o meu lado. Gosto de escrever imagens quando me perco numa condensação de pensamentos, meu pensamento é névoa colorida, algodão doce, é macio deitar em mim. Gosto de ter tempo à toa para pensar. Quando sinto fortemente o espaço vazio entre letras, um hiato, uma lacuna, como desejar ou escrever uma palavra que não existe, eu quem criei como essa agora: “poetalografia”, poetalografia se liga a um fio associativo de uma ideia, cada pedaço da palavra remete a significados internos de mim, a outras historietas, é um êxtase vivo pulando em mim para que eu crie essa palavra que não existe, então, como escrever a imagem de poetalografia? Um amontoado de outros significantes diferentes surgem em mim como pétalas de ipê caindo numa calçada, significantes que me lembram sentimentos, lembrança da lembrança, aí penso em cores, estampas, cortes, imagens. O visual é desenho da palavra. Poetalografia. Ninguém me para.
Matheus: O que Ofélia quer transmitir com sua arte?
Ofélia: Lembrei-me de um sonho que tive há uns meses, era um prenúncio antes de eu existir. Sonhei que lia um livro que se chamava: “A arte da escrita semiótica”, na capa tinha cores em aquarela que formavam um fundo de tom de azul claro, com manchas sobrepostas em rosa, amarelo e bordô. Essas cores se mesclavam e formavam a silhueta feminina de costas, ela usava um vestido azul marinho e tinha cabelos curtos, de costas. Abaixo do título tinha “Sobre a escrita feminina”. Eu pesquisava no sonho esse livro para comprar e que não tinha. Me perguntava no sonho: “Como ler um livro que não se existe?”. Minha psicanalista me devolveu a pergunta. Eu sussurrei esse título do livro em forma de um material onírico para isso. Um livro que exista que se explique esse enodamento de meu feminino não se existe, não há palavra e expressões que deem conta de um vir-a-ser mulher. Então é isso que eu, Ofélia Frantumare quero transmitir, transfigurar. E acho que nem assim consigo de fato, me sinto rodopiando solta no vazio escuro de mim. Rodopiar com ideias é não ter ideia. Eu quero transmitir que estou solta. Encarnar um substrato da verdade. Um prazer orgástico de letras do desejo. Eu em ausência me mostro de verdade. Eu quero perpetuar um pedaço do meu universo uterino, revelar as estrelas douradas se penduram com fios dourados entre as paredes dessa cabana secreta que há em mim. Eu Ofélia, moro no vermelho. No vermelho vampiresco me faço ser mulher. Sangro e pulso, é daqui que saem minhas vidas, intenções e o irrepresentável que quero representar. É dizer todos os meus símbolos femininos pessoais em cada coisa que uso, raiz da palavra. Consigo te passar o aquecimento que sinto?
Matheus: Ofélia, recomenta para os leitores da Brasilis 03 livros importantes para você:
Ofélia: Todos esses livros têm marcas mais profundas que tatuagem dentro da minha alma. Gosto de ler livros em que cada palavra me atravesse como corte de um punhal pontiagudo no coração. 1 — “Um sopro de vida”. — Clarice Lispector 2- “Tetralogia: A amiga Genial”. — Elena Ferrante 3- “ O anatomista”. — Frederic Andahazi De bônus: “ La Frantumaglia” — Elena ferrante “ Os anos”. — Annie Ernaux

autorretrato de Ofélia (2025).


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